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"Um feliz engano" — conto de Lucy Maud Montgomery

  • rafatraduzblog
  • 15 de jun.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 23 de jun.

Olá, leitor!

Aqui você vai encontrar a minha tradução do conto “A Fortunate Mistake”, publicado pela autora Lucy Maud Montgomery em 1904. A obra original está em domínio público e pode ser acessada no site do Project Gutenberg, clicando no link.

Espero que goste da leitura!


Arte original criada por Rafaela Schelbauer Wendt.

Um feliz engano

de Lucy Maud Montgomery

Tradução de Rafaela Schelbauer Wendt


— Oh, Deus! Oh, céus! — reclamou Nan Wallace, revirando-se, inquieta, no sofá de seu lindo quarto. — Nunca pensei que os dias pudessem ser tão longos.


— Pobrezinha! — disse sua irmã Maude, em solidariedade. Maude movia-se rapidamente pelo cômodo, organizando-o com esmero, como a mãe havia requisitado. Nan era quem deveria organizar o quarto naquela semana, mas havia torcido o tornozelo três dias antes e, desde então, era incapaz de fazer nada além de deitar no sofá. Nan, como a jovem ativa e enérgica que era, já estava cansada disso.


— E o piquenique desta tarde, também! — ela suspirou. — Esperei por isso o verão todo. O dia está perfeito... e eu tenho que ficar aqui, cuidando deste pé.


Nan lançou um olhar rancoroso ao membro enfaixado, enquanto Maude esticava-se para fora da janela para colher a rosa de uma trepadeira. Enquanto o fazia, ela acenou para alguém na rua abaixo.


— Quem está passando? — perguntou Nan.


— Florrie Hamilton.


— Ela vai para o piquenique? — perguntou Nan com indiferença.


— Não. Ela não foi convidada. De qualquer maneira, acho que ela não esperava que a convidassem. Ela sabe que não faz parte do nosso grupo. Deve sentir-se horrivelmente deslocada na escola. A maioria das garotas acha ridículo que o pai a tenha colocado na escola particular da professora Braxton — a filha do supervisor de uma fábrica.


— Mesmo assim, acho que ela também deveria ter sido convidada para o piquenique — falou Nan. — Ainda que não esteja no nosso grupo, ela está em nossa turma. Claro, imagino que ela não teria se divertido ou mesmo comparecido, ainda que a convidassem. Ela certamente não tenta se enturmar conosco. Quem não a conhece, pode até pensar que é muda.


— Ela é a melhor aluna da classe, — Maude admitiu, colocando as rosas em um vaso e depositando-o na mesa onde Nan apoiava o cotovelo. — mas Patty Morrison e Wilhelmina Patterson eram as responsáveis pelos convites e não a queriam lá. Olhe, Nannie querida, não são lindas? Vou deixá-las aqui para que lhe façam companhia.


— Elas não serão minha única companhia, — disse Nan, golpeando seu travesseiro energicamente. — Não vou ficar me lamentando aqui a tarde toda, enquanto você se diverte no piquenique. Você poderia escrever um bilhetinho para a Florrie Hastings, por favor? Vou fazer o mesmo por você se um dia torcer seu pé.


— O que devo escrever? — disse Maude, prestativa, mexendo descuidadamente em seus papéis.


— Oh, só pergunte a ela se não viria até aqui animar uma pobre inválida nesta tarde. Ela virá, eu sei. E ela é uma ótima companhia. Diga a Dickie que vá entregá-lo imediatamente.


— Pergunto-me se Florrie Hamilton irá sentir-se magoada por não ter sido convidada para o piquenique — Maude refletiu distraidamente, deslizando o bilhete para dentro de um envelope e endereçando-o.


Florrie Hamilton era quem melhor poderia responder àquela pergunta, enquanto caminhava na rua sob a luz do sol daquela manhã fresca. Sentia-se magoada — com mais intensidade do que poderia admitir até para si mesma. Não é que se importasse com o piquenique: como Nan Wallace havia dito, ela provavelmente não se divertiria em meio a uma multidão de garotas que haviam-na menosprezado e ignorado. Mas ser excluída quando todas as outras garotas da escola haviam sido convidadas! Seu lábio tremeu quando pensou sobre isso.


— Vou convencer meu pai a deixar-me ir para a escola pública depois das férias — ela murmurou. — Odeio ir para a escola da professora Braxton.


Florrie era nova em Winboro. Recentemente, seu pai havia assumido um cargo na maior fábrica da cidade. Por esta razão, Florrie era desprezada por algumas meninas rudes na escola e excluída pela maioria dos outros estudantes. Alguns, é verdade, haviam tentado fazer amizade, mas Florrie, muito sensível ao ambiente ao seu redor para dar-lhes uma resposta, fora considerada tediosa e desanimada. Ela foi se fechando mais e mais, ao ponto de estar tão solitária na Miss Braxton quanto estaria em uma ilha deserta.


Eles não gostam de mim porque me visto de maneira sem graça e meu pai não é rico, pensou Florrie com amargura. E, ao que dizia respeito a muitas alunas da Senhorita Braxton, ela não se enganava ao pensar assim, o que tornava a sua situação bastante desconfortável.


— Chegou uma carta para você, Flo — disse seu irmão Jack ao meio-dia. — Peguei no correio no caminho para casa. Quem é o seu elegante remetente?


Florrie abriu o delicado e perfumado bilhete com uma expressão que, a princípio intrigada, tornou-se repentinamente radiante.


— Ouça, Jack — ela disse animada.

 

“Cara Florrie:

 

Nan está presa em casa, em seu quarto e sofá devido a uma torção em seu pé. Como ela vai ficar sozinha hoje à tarde, você não viria aqui passar o dia com ela? Ela quer muito que você venha — está tão solitária e pensa que você é a pessoal ideal para alegrá-la.


Cordialmente, Maude Wallace.”


— Você vai? — perguntou Jack.


— Sim... Não sei... Vou pensar nisso — disse Florrie distraída. E então subiu apressadamente as escadas que levavam ao seu quarto.


Devo ir?, pensou. Sim, eu vou. Me atrevo a dizer que Nan me chamou por pena, porque não fui convidada para o piquenique. Mas foi muito gentil da parte dela. Sempre achei que gostaria das garotas Wallace se pudesse conhecê-las. Elas sempre foram tão legais comigo, também... Não sei por que sou sempre tão calada e estúpida quando estou com elas. De qualquer forma, eu vou.


Naquela tarde, a Sra. Wallace entrou no quarto de Nan.


— Nan, querida, Florrie Hamilton está lá embaixo, perguntando por você.


— Florrie... Hamilton?


— Sim. Ela falou de um bilhete que você enviou para ela esta manhã. Devo pedir que suba?


— Sim, claro — disse Nan fracamente. Quando a mãe saiu, ela afundou-se em seus travesseiros e raciocinou rapidamente.


Florrie Hamilton! Maude deve ter se enganado ao endereçar o bilhete. Ela não deve saber que é um engano — nem sequer deve suspeitar disso. Oh, céus! Sobre o que poderíamos conversar? Ela é tão tímida e quieta.


Suas reflexões foram interrompidas pela entrada de Florrie. Nan segurou sua mão com um sorriso simpático.


— Que gentil da sua parte dedicar a sua tarde a visitar uma inválida rabugenta — disse com entusiasmo. — Você não sabe como estive solitária desde que Maude saiu. Tire o seu chapéu e escolha a cadeira que achar mais confortável. Fique à vontade.


De alguma forma, a saudação genuína de Nan dissipou a timidez de Florrie e a fez sentir-se em casa. Ela sentou-se na cadeira de balanço de Maude. Ao avistarem um vaso cheio de rosas, seus olhos brilharam, contentes. Percebendo, Nan perguntou:


— Não são lindas? Nós, Wallaces, adoramos nossas rosas trepadeiras. Nossa bisavó trouxe as mudas da Inglaterra há sessenta anos e elas não crescem em nenhum outro lugar neste país.


— Eu sei — disse Florrie, com um sorriso. — Eu as reconheci assim que entrei. Elas são o mesmo tipo de rosas que florescem na casa da Vovó Hamilton, na Inglaterra. Eu as amava muito.


— Na Inglaterra! Você já esteve na Inglaterra?


— Ah, sim. — Florrie riu. — E em quase todos os outros países do planeta. Todos que podem ser acessados de navio, pelo menos.


— Florrie Hamilton! Você está falando sério?


— Sim, estou. Talvez você não saiba que a nossa "mãe atual", como o Jack costuma dizer, é a segunda esposa do meu pai. Minha mãe morreu quando eu era um bebê e a minha tia, que não tinha filhos, me trouxe para criar. O marido dela era o comandante de um navio e ela sempre participava de suas viagens. E eu viajava com ela. Praticamente cresci a bordo. Foram tempos maravilhosos. Nunca fui à escola. Minha tia trabalhava como professora antes de casar e me ensinou. Dois anos atrás, quando eu tinha catorze anos, meu pai casou-se de novo e quis que eu viesse para casa morar com ele, Jack e nossa nova mãe. Então eu vim, apesar de, no início, ter me sentido mal em deixar minha tia, nosso bom e velho navio e os nossos adoráveis passeios.


— Oh, conte-me sobre eles — exigiu Nan. — Por que, Florrie Hamilton, nunca nos contou sobre as suas experiências maravilhosas? Adoro ouvir sobre países estrangeiros de pessoas que realmente estiveram lá. Por favor, apenas me conte — eu a ouvirei e farei perguntas.


Então, Florrie contou. Não tenho certeza se foi Nan ou ela quem mais surpreendeu-se ao descobrir que conseguia expressar-se tão bem e descrever suas viagens de uma maneira tão vívida e engraçada. A tarde passou depressa. E quando, ao anoitecer, Florrie foi embora, depois que uma agradável xícara de chá havia-lhe sido servida no quarto de Nan, levou consigo um afetuoso convite para que voltasse em breve.


— Me diverti muito com a sua visita — disse Nan com sinceridade. — Vou visitá-la assim que voltar a caminhar. Mas não espere por mim. Vamos ser boas e íntimas amigas, sem formalidades.


Quando Florrie partiu, com o coração leve e um sorriso feliz, Maude chegou de seu piquenique, alegre e queimada do sol.


— Que ótimo dia tivemos! — exclamou. — Fiquei com pena ao pensar em você, confinada aqui! A Florrie veio?


— Uma das Florries veio. Maude, você endereçou o bilhete à Florrie Hamilton, não à Florrie Hastings.


— Nan, não é possível! Tenho certeza de que enderecei o bilhete à Florrie...


— Sim, à Florrie Hamilton. E ela veio. Fui pega de surpresa, Maude!


— Eu estava pensando nela enquanto escrevia e devo ter colocado o nome dela por engano. Sinto muito...


— Não precisa se desculpar. Fazia tempo que não me divertia tanto. Maude, ela já visitou tantos lugares... e é tão alegre e engraçada quando perde a timidez. Transforma-se em outra garota. Ela é simplesmente tão adorável!


— Bem, fico contente que tenham se divertido juntas. Sabe, algumas garotas ficaram incomodadas ao saber que ela não havia sido convidada para o piquenique. Disseram que era uma falta de cortesia imensa não convidá-la e que isso era culpa de todas nós, mesmo que Patty e Wilhelmina fossem responsáveis pelos convites. Temo que nós, alunas da professora Braxton, temos agido de maneira esnobe ultimamente e algumas de nós estão envergonhadas ao se dar conta disso.


— Só espere até as aulas voltarem — disse Nan, de maneira vaga. Todavia, Maude a entendeu.


No entanto, elas não tiveram de esperar até a volta às aulas. Muito antes disso, as garotas de Winboro descobriram que as irmãs Wallace queriam ser amigas de Florrie Hamilton. Se as meninas Wallace gostavam dela, deveria haver algo nela que não haviam conseguido enxergar à primeira vista — assim as outras meninas da escola concluíram. E, gradualmente, elas descobriram, assim como Nan havia descoberto, que Florrie era muito divertida e uma ótima companhia quando sentia-se à vontade com alguém. Quando as aulas voltaram, Florrie havia se tornado a favorita da classe. Entre ela e Nan havia se formado uma bela e zelosa amizade que viria a tornar-se maior e mais profunda ao longo de suas vidas.


E tudo porque Maude, distraída, escreveu "Hamilton" em vez de "Hastings", Nan pensou consigo mesma. Mas isso era algo que Florrie Hamilton nunca saberia.

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